domingo, 22 de janeiro de 2017

Crimes de ignorância

Descrição para cegos: umbandista trajando
roupa branca em meio às cinzas que restaram
de um incêndio no templo que administrava.

Por Douglas de Oliveira

Intolerância religiosa: racismo, segundo o Supremo Tribunal Federal. Inafiançável e imprescritível. Pena de até cinco anos de prisão. Palavras e atitudes de ódio são enquadradas nesse crime. A Polícia Civil deve instaurar inquérito para apurar as circunstâncias do caso. O acusado tem direito a defesa até que a sentença seja estabelecida.

      Quantas vezes criminosos escapam pelas brechas da justiça neste país? Inúmeras! E em inúmeras espécies de crime, por vias tortuosas da impunidade. Contudo, em processos relativos a intolerância religiosa, a concessão é o principal combustível para a liberdade dos racistas. Em decorrência da ignorância social endêmica e, por conseguinte, do preconceito consonante com o pensamento generalizado, praticantes de cultos afro-brasileiros são “naturalmente” feridos com agressões massivas.
        Mas, e quando a intolerância parte das autoridades que têm o dever de zelar pelo cumprimento da lei? A polícia, muitas vezes no exercício da sua função, extrapola suas prerrogativas e age como se vivêssemos no século XIX.
Os terreiros já abandonaram há muito a condição de espaços de afronta à lei que lhes eram atribuídos injustamente pela visão preconceituosa de uma população escravagista e racista. O caráter de fundo de quintal que ainda pesa na etimologia da palavra é aceito constitucionalmente neste século XXI, embora sofra com a marginalização consequente do racismo.
Mesmo assim, existem relatos como o de Mãe Valéria, confrontada por agentes da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente de Fortaleza (CE) sobre beber sangue e comer carne crua. “Ora, e você não come galinha à cabidela? Não come carpaccio? Que tem de crime nisso?”, retrucou ela. Logo após, quase teve seus atabaques (instrumentos sagrados no culto) usurpados, sob a queixa de excesso de barulho, embora o relógio ainda não marcasse 22hs. Há 40 anos, dirige a casa. Tudo mudou após a construção de um condomínio na vizinhança. Nenhum dos envolvidos respondeu por intolerância religiosa.
“Na minha casa os policiais militares entraram e tentaram levar o atabaque. Eram 21h30min, mais ou menos, eu estava trabalhando com a entidade e quando voltei dei de cara com a arma”, relata Mãe Edna, também de Fortaleza (CE). Os PMs estavam investigando uma denúncia de sacrifício humano, embora não portassem autorização judicial. Além disso, tiraram fotografias do local sem autorização. Antes disso, a Tenda de Iansã, como é conhecida sua casa, sofreu um incêndio criminoso. A Polícia Civil não esclareceu o caso. Novamente, a intolerância agrediu como num processo de geração espontânea.
Mãe Ruthneia, coordenadora estadual do Centro Nacional de Africanidade e Resistência (Cenarab-PI), cita uma pesquisa do extinto Ministério dos Direitos Humanos que constatou a diferença na abordagem de policiais militares quanto a denúncias de barulho em diversos locais de culto religioso: templo católico, protestante, e candomblecista ou umbandista. E, claro, o resultado mostrou que os últimos padeciam com invasão durante as celebrações e quebras de imagens. E ninguém (ou quase ninguém) preso!
A mais recente iniciativa do Cenarab-PI deveria ser disseminada por todo o país. Eles reuniram policiais militares do Piauí para discutir sobre diversidade de credo e descrever o funcionamento das religiões de matriz africana e dos terreiros, no intuito de desconstruir preconceitos; a informação utilizada como uma ferramenta fundamental. Em 2015, no Disque 100, dos Direitos Humanos, as denúncias sobre intolerância religiosa aumentaram 70% em relação a 2014. Sob uma visão otimista, talvez esteja proliferando a consciência em torno da criminalização de posturas como as citadas acima.

Nelson Mandela já dizia que “ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”. O conhecimento sobre grupos socialmente marginalizados e o fomento ao respeito deve, pois, romper os muros de universidades e de grupos destinados a discussões do gênero, tanto pela repressão da criminalização do preconceito quanto pela educação humanizada. É essencial que, munidos de informação e retórica, alcancemos os redutos que produzem a “naturalização” de pensamentos e atitudes racistas. A perspectiva de mudança real reside na expansão do conhecimento àqueles que agridem com ignorância e, simultaneamente, afogam-se nesse poço sem fundo. Dignos de pena.

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