O Brasil, graças ao seu processo de colonização, possui uma
grande diversidade de religiões, muitas delas extremamente marcadas pelo
sincretismo. O texto abaixo, de Ronaldo Vainfas, publicado na Revista de
História, expõe como funcionava o sincretismo religioso na época do Brasil
Colônia (Érica Rodrigues).
Ilustração: Érica Rodrigues |
Sincretismo nosso de
cada dia
Cotidiano do período
colonial mostra como é difícil sustentar estereótipos no campo da religiosidade
Entre os documentos das visitações inquisitoriais enviadas
ao Nordeste brasileiro no final do século XVI, vários dão pistas da
religiosidade popular da Colônia. Um senhor de escravos, cristão-novo, mandou
Cristo à merda ao acompanhar a procissão do Santíssimo Sacramento na Bahia
seiscentista. Uma cigana
espanhola, em meio a um temporal nas ruas de Salvador,
gritou: “bendito sea el carajo de Cristo que mija sobre mí”. Outro gostava de
colocar o crucifixo embaixo da cama, para dar sorte, quando transava com a
esposa – o que não deu certo, pois a mulher era adúltera. Um senhor de escravos
do Recôncavo Baiano resolveu abrigar nas suas terras uma seita indígena meio
tupinambá, meio católica, e ainda se ajoelhava diante do ídolo de pedra que os
índios cultuavam. O chefão da seita dizia nada menos que era o verdadeiro papa
e sua mulher, ou a principal delas, ostentava o título de Santa Maria Mãe de
Deus. Falando nisso, e pulando para o século XVIII, Tereza de Jesus,
cristã-nova pela metade, pois a mãe era católica, disse que Santa Maria e Santa
Esther eram a mesma coisa, assim como Cristo e Moisés eram parecidos. Morava no
Rio de Janeiro, morreu queimada em Lisboa.
Onde estamos? Em alguma Babel religiosa? Não. No Brasil
Colônia, onde a única religião admitida era o catolicismo. Mas a Coroa
portuguesa fez alguma coisa para assegurar o triunfo do catolicismo no Brasil?
Ao menos tentou. Além das motivações comerciais, é sabido
que um dos principais objetivos da colonização era o de expandir o catolicismo
no Novo Mundo. Isto vale também para outras partes do império português, como
os enclaves no Oriente ou na África, embora nelas a presença portuguesa tenha
sido superficial, feitorial. No Brasil, onde os portugueses ocuparam o
território e a Coroa incentivou o povoamento, o esforço evangelizador foi mais
saliente.
Não surpreende, porém, o abismo entre o catolicismo colonial
e o projeto da Igreja de Roma. Menos surpreendente ainda é que tenham grassado
no Brasil variadas formas de sincretismo religioso, mistura entre o catolicismo
e crenças nativas e africanas, para não falar das judaicas, trazidas pelos
cristãos-novos que fugiam da Inquisição, quando não vinham degredados por
judaizar. Mesmo assim, o Santo Ofício prendeu muitos e queimou alguns por
heresia.
Em todo caso, quando falamos de religiosidade popular na
Colônia, não convém adotar uma sociologia rígida. O popular, no caso, diz mais
respeito à religiosidade cotidiana do que à posição social do indivíduo. Se o
sincretismo religioso prevaleceu desde o início, ele foi compartilhado, em
vários graus, por senhores e escravos, portugueses e naturais da Colônia,
brancos, negros, índios, mulatos, pardos, cafuzos, enfim, por toda a sociedade
luso-brasileira.
Além disso, vale pôr em xeque dois estereótipos consagrados
no senso comum. O primeiro é a ideia de que o nosso sincretismo religioso se
limitou à mistura do catolicismo com as religiões africanas. O segundo é a
ideia de que o catolicismo fracassou no Brasil, aviltado pela mistura de
religiões.
Sincretismo religioso colonial: o que foi isto? Um mix cultural de várias faces e múltiplas
combinações. Começou pela mistura do catolicismo com a mitologia tupinambá, do
que dá mostra a Santidade baiana de Jaguaripe. Nela pontificava, sem
trocadilho, o papa Antônio, índio educado pelos jesuítas, mas com vocação de
pajé. Homem que também dizia, em transe, que encarnava o ancestral-mor dos
tupis, Tamandaré, enquanto fumava o petim (tabaco) em um cachimbo comprido. O
próprio ídolo da seita tinha um nome que, apesar da língua, era cristão:
Tupanasu, grande deus, invenção jesuítica para nomear o deus cristão em língua
inteligível para os índios. O sincretismo fez sua estreia sob a batuta dos
jesuítas.
Sincretismo afro-brasileiro: nomeá-lo assim é dizer pouco.
Isto porque o catolicismo, antes de ser brasileiro, era português. Segundo, o
catolicismo dos portugueses não era exatamente o da Roma dos papas. Os
portugueses do Brasil eram mais dados à aventura do que à religião. Terceiro,
porque nunca houve uma África, senão várias. África bantu, África iorubá, para
dizer o mínimo.
Na prática, as misturas foram extraordinárias. Um dos
primeiros a enxergar o sincretismo afro-brasileiro foi Nina Rodrigues, médico
de profissão, etnólogo por vocação. Sugeriu, no início do século XX, que os
africanos cultuavam seus deuses tradicionais misturados aos santos católicos. Ingenuidade.
O etnólogo e filho de santo Roger Bastide, francês, foi além e considerou tais
cultos originais. Interpretou a “religiosidade negra” como resistência à
escravidão ancorada em sobrevivências religiosas africanas. Ingenuidade também.
O sincretismo afro-brasileiro nem foi resistência, nem
fingimento acomodativo. Também não foi só afro-brasileiro, pois viscejou em
Portugal. Na Colônia, foi invenção construída por africanos, de várias origens,
para lidar com o sobrenatural em uma situação de diáspora. Situação colonial.
Em alguns casos, chegou-se a esboçar um protocandomblé, nas palavras de Luiz
Mott, referindo-se ao terreiro dirigido pela negra Josefa Maria, perto de
Paracatu, Minas Gerais, no século XVIII. Na escuridão da noite, escravos e
forros se reuniam para bailar a Dança da Tunda, Acontudá, ritual da nação
courana, originária do Daomé. No Rio de Janeiro também havia um calundu
dirigido por uma parda forra, Veríssima, onde todos dançavam ao som dos
batuques. Quais orixás baixavam nesses terreiros? Não faço a menor ideia. Os
inquisidores, menos ainda.
A própria palavra calundu, de origem bantu, consagrada no
século XVII para designar os cultos da senzala, foi invenção colonial para
generalizar a religiosidade negra. Gregório de Mattos, o Boca do Inferno,
escreveu sem rodeios: “o que digo é que, nestas danças, Satã tem parte nelas”.
Falar em sincretismo afro-brasileiro, portanto, é dizer
pouco. Como interpretar as “bolsas de mandinga”, cobiçadas por protegerem seus
portadores de todos os males, além de facilitar amores, fechar o corpo e ganhar
no jogo? Pois bem, as bolsas tiveram origem no norte africano, entre os
mandingas, povo islamizado. Eram uns saquinhos, como sachês, que continham um
verso do Alcorão escrito em um pedaço de papel. A coisa se espalhou pela
África, pelo Brasil e Portugal e foi aumentando de tamanho. Passou a incluir
ossinhos de mortos, pedaços de pedra d’ara (altar cristão), cabelos, unhas... O
sachê original virou um bolsão de algodão cru repleto de elementos religiosos,
vivos ou mortos. Impossível conceituar este mélange, senão como resultado de um
intercurso cultural de diversos continentes.
O catolicismo fracassou? Só se adotarmos o modelo do
Concílio de Trento. Não é o caso dos historiadores. De sorte que, na verdade, o
catolicismo irrigou toda a religiosidade colonial. Esteve presente em algumas
rezas do Acotundá mineiro, na Santidade indígena da Bahia, no terreiro carioca
da forra Veríssima, nas bolsas de mandinga, nos calundus e catimbós, nas
invenções de cristãos-novos que misturavam Cristo e Moisés.
Uma evidência indiscutível é a crença de que as palavras
eucarísticas tinham poder de atração sexual ou, ao menos, de amansar maridos
hostis. Hoc est enim corpus meum – “este é o meu corpo”. Na Bíblia, consta que
Jesus assim consagrou o pão na última ceia, e nisto reside o mistério da
transubstanciação. É o corpo de Cristo que está na hóstia consagrada? Ou é um
símbolo, uma metáfora? O povo entendia este mistério de modo direto: se o corpo
de Cristo entrava na hóstia por meio daquelas palavras, o corpo do amado
passava a ser de quem proferisse a mesma frase. Mas havia um detalhe: era
preciso dizê-las em latim e no ato da cópula. Entre gemidos e gozos.
Outra evidência final: Madre Vitória da Encarnação, freira
do convento baiano de Santa Clara do desterro. Era tremendamente religiosa.
Punha cinza na comida para estragar o paladar. Carregava nas costas uma cruz
pesada pelos corredores do convento. Usava cilícios para flagelar o corpo.
Esbofeteava-se. Um exemplo do catolicismo colonial: sensível, barroco. Madre
Vitória também dizia ter visões. Dizia que visitava, à noite, as almas do
Purgatório. Contava ainda que, algumas vezes, viu o Diabo, que lhe aparecia na
forma de um “molequinho negro”. Catolicismo barroco, catolicismo escravista. O
arcebispo da Bahia instruiu processo para transformá-la em santa, ao menos
beata. Não prosperou a ação do arcebispo. O Brasil nunca teve santos. Nem
santas.
Ronaldo Vainfasé professor da Universidade Federal
Fluminense e autor de A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil
Colonial (Companhia das Letras, 2010).
Diferenças ibéricas
Comparado à colonização espanhola, o apoio da Coroa à
evangelização foi pífio. Basta dizer que, até meados do século XVI, só havia um
bispado no Brasil, o da Bahia, criado em 1551, enquanto a vizinha América
Espanhola possuía dezenas. Qualquer indicador reforçaria esta constatação. No
mundo hispano-americano: presença expressiva de várias ordens religiosas,
universidades que formavam teólogos, tribunais do Santo Ofício, organização da
Igreja conforme o Concílio de Trento (1545-1563), bastião da Contra-Reforma. No
Brasil, apesar do esforço missionário dos jesuítas, os limites da pastoral
católica eram fortes. Além dos jesuítas, alguma ação dos franciscanos, sobretudo
na Amazônia; os beneditinos abrigaram
filhos da elite colonial; padres franceses missionaram nos sertões,
patrocinados pela Propaganda Fide. As irmandades leigas – vá lá – tiveram algum
papel na rotina dos colonos – e até dos escravos – sobretudo em Minas, onde a
Coroa proibiu as ordens religiosas, sabedora de que o ouro e os diamantes
também despertavam cobiça nos homens de Deus.
SAIBA MAIS
CALAINHO, Daniela. Metrópole das mandingas: religiosidade
negra e Inquisição no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
MELLO e SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
MOTT, Luiz. “Cotidiano e vida religiosa: entre a capela e o
calundu”. In: MELLO e SOUZA, Laura de
& NOVAIS, Fernando A. (orgs.). História da vida privada no Brasil. Vol. 1.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 155-220.
Retirado de: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/sincretismo-nosso-de-cada-dia
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