sábado, 22 de abril de 2017

Intolerância musical

Descrição para cegos: freira sorridente recebe passe dado por pai de santo na lavagem da escadaria do Senhor do Bonfim.

Marcelo Piancó

Algumas coisas nós não percebemos, talvez porque a intenção de quem as faz seja esta mesmo. Por exemplo, eu nunca havia notado nas raras lojas de discos que ainda restam por aqui o que se consegue encontrar naquela sessão batizada de músicas religiosas. Pois bem, alertado por um grande apreciador de discos e também um observador de lupa limpa e no grau certo, fui então passar em revista uma dessas sessões e descobri que o estado é laico, mas a sessão de discos religiosos é mais cristã que aquelas camisetas 100% Jesus.
Aqui não vai nenhuma crítica à música cristã, apenas a constatação de que fonograficamente falando, as músicas que não rezam por este evangelho não garantem a entrada neste paraíso musical. E digo que é um paraíso musical mesmo, porque segundo a Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), esse estilo musical, de diferentes correntes religiosas, transpôs de vez os altares das igrejas e mantém crescimento em torno de 15% ao ano, o equivalente a 30% da arrecadação da indústria de mídias, e já ultrapassa em vendas os grandes nomes da profana música popular brasileira.
Mas deixando a credulidade de lado, eu não quero é ficar calado diante do que não se vê e muito menos se ouve na sessão de religiosos. Os discos com músicas das religiões de origem africanas ou mesmo os batuques que invocam Tupã, foram completamente exorcizados desta sessão, ou talvez, com perdão da expressão, nunca chegaram a baixar por lá. Se você for um bom pesquisador, pode até encontrá-los na mesma loja, mas em espaços com outras denominações como wolrd music, música tribal ou na vala comum dos diversos.
Isso nos leva a constatar que na música religiosa o preconceito está na mesma escala da sociedade, uma reflexão óbvia, mas também inaceitável. Afinal, o meio musical sempre foi tido como um setor mais democrático, progressivo e porque não dizer, ecumênico. É triste saber que o que a sociedade trata como ocultismo as lojas ocultam mesmo, sem perdão, como uma espécie de castigo por sua origem. Será que essa música merece também esse sectarismo mercadológico?
Invoco minha herança musical para entoar que não. E prefiro sonhar que a essência miscigenada da melhor música do mundo chegue também às prateleiras que ainda restam. Pois nasci, cresci e vou morrer ouvindo os apelos txai de Milton Nascimento pelos povos da floresta, o velho novo canto ijexá de voz tão Clara, sem falar no batuque iorubá que Naná Vasconcelos divinizou ainda mais.

É, talvez eu seja apenas um romântico saudosista, mas se até o vinil ressuscitou, talvez custe menos que um sonho, idealizar uma convivência religiosa pacífica, a começar por uma simples sessão de discos. O problema maior é que isto, literalmente, acontece dentro de um mercado, onde é muito comum se vender até a alma. E aí só se salva quem é mais comercial, amém?!

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